sábado, março 24, 2007

Esmola a crédito














Não domino suficientemente Economia para discorrer sobre Microcrédito ou sobre Muhammad Yunus, Prémio Nobel da Paz no ano passado e que esteve por estes dias em Portugal.

Contudo, das numerosas entrevistas que deu retive um excerto que passou na RTP1 em que o economista, banqueiro e agora também político, falava dos critérios de atribuição de crédito bancário. Dizia ele qualquer coisa como: escolhemos alguém que não tenha nada, rigorosamente nada, para lhe conceder o empréstimo. Se houver um pobre com mobília e outro sem uma cadeira sequer, escolhemos o último.

Para além do novo partido de Yunus cheirar a populismo, o seu comentário não deixou de me perturbar. O domínio em que Yunus trabalha é o da mais absoluta miséria. Trabalha sobre aqueles que nada tendo (e aqui pergunto-me se Yunus, tal como Hayek, não terá estudado psicologia) são capazes de fazer tudo pela própria sobrevivência.

O que me revolta nesta personagem, proveniente de um dos país mais pobres do mundo (Bangladesh), é passar por altruísta uma actividade comercial que visa, naturalmente, o lucro. Não que isso, o lucro, tenha algum mal, tal como a religião não tem mal nenhum se não se aproveitasse, precisamente, de um mesmo pasto: a ignorância ou a miséria.

As profundas implicações políticas de uma actividade como esta (a do Microcrédito) são muitas, sobretudo minar a actividade social dos Estados e reforçar a ideia neoliberal de que a iniciativa privada pode suplantar os governos até na redistribuição equitativa da riqueza.

Ontem, porque tenho a sorte de ver televisão espanhola, vi o documentário «Memória del Saqueo» de Fernando Solanas (2002-04) sobre os últimos anos da história da Argentina que, em dezembro de 2001, conheceu as maiores manifestações populares de sempre em clima de falência do país.

Sob a presidência de Carlos Ménem, a Argentina sofreu uma reforma radical do Estado (ultraliberal) que privatizou tudo, desde os riquíssimos recursos em petróleo e gás (a espanhola Repsol comprou a estatal argentina YPF), passando pela televisão, telefone, produção agrícola, caminhos-de-ferro, etc..

Os crimes financeiros então cometidos, com a cumplicidade do poder político, judicial e mesmo dos sindicatos, colocou a Argentina à beira do abismo. Europa (sobretudo a França e a Espanha), EUA e FMI contribuiram em muito para que as coisas tivessem chegado a esse estado, com a sua dupla política liberal na Argentina e proteccionista em casa. As empresas estrangeiras que compraram as argentinas a preços da chuva, não cumpriram os contratos a que estavam sujeitos e nenhum sector se viu beneficiado com a privatização. Em poucos anos, um país com a capacidade de produzir alimentos para 300 milhões de pessoas via morrer diariamente 100 de inanição, sendo que em 2001 60% da população era pobre ou indigente.

Nunca vejo esta gente falar do caso argentino por algum motivo: porque prova a total falsidade das suas propostas. Os pequenos motivos que todos os dias parecem dar razão aos liberais do burgo, como a actividade de Yunus, escodem uma realidade, cuja sordidez só pode ser comparada com os antigos regimes totalitários do leste europeu e demais países ditos «socialistas». A corrupção tornará sempre qualquer sistema económico totalitário (total ou nula interferência dos Estados na suas respectivas economias) um falhanço. Um falhanço que foi uma tragédia no século XX e pode ser a nova tragédia do século XXI.

A esmola a crédito de Yunus é só mais um sintoma dessa caminhada perturbadora que parece imparável. Também em Portugal.

(aqui vos deixo um excerto do filme de Solanas)