sábado, março 17, 2007

Diário da manha



















O Diário de Notícias já cheira a Correio da Manhã. Sente-se à légua quando se lê e vê a forma como foi tratada esta notícia, com direito a destaque na primeira página de ontem (na imagem) e que esteve na origem do editorial desse mesmo dia com o sugestivo título de «Números-surpresa».

Vamos por partes. A primeira-página.

«Mulheres ganham mais do que os homens na função pública», em letras garrafais e, em subtítulo, «Elas são mais qualificadas e por isso têm salários em média 26% superiores aos deles».

Ora a partir da leitura do artigo não é possível inferir que as «mulheres ganhem mais do que os homens», existe sim uma quantidade maior de mulheres em profissões melhor remuneradas e que exigem melhores qualificações (professoras, médicas, enfermeiras, etc.), fruto do boom universitário dos anos 90 que foi maioriamente feminino.

Aliás, no próprio texto é sugerido que para as mesmas qualificações um homem ganha mais do que uma mulher, não porque os estatutos da função pública discriminem por sexo, mas porque a subida na carreira é mais difícil para uma mulher do que para um homem, com a correspondente diferença salarial. Exemplos práticos. É mais comum um especialista de estomatologia chegar à chefia do seu departamento do que uma colega sua. É mais comum um professor chegar a director de uma escola do que uma colega sua. So and so on.

«Portuguesas ganham mais na função pública» era o título da notícia on-line. Suponho que lhe falte a parte que compara as portuguesas aos... portugueses. Mas, neste caso, o título é mais verdadeiro do que o título da primeira-página da edição impressa. Não tenho a menor dúvida que, com as mesmas qualificações, uma mulher portuguesa tenha menores remunerações no privado do que na função pública. Aliás, tenho a impressão de que a imensa maioria dos trabalhos mal-remunerados, fora do Estado, é ocupado por mulheres, independentemente da sua formação.

O Editorial é, no entanto, a pedra-de-toque de tudo isto. «Números-surpresa». Uma pessoa minimamente atenta percebeu logo que a notícia, e ela baseia-se num estudo do Banco de Portugal de 2005 sobre dados de 1999, tem a intenção de passar a sensação de que no «Reino da Mulher Portuguesa» tudo vai tão bem que até, imagine-se o cúmulo, ganha mais do que o desgraçado do homem.

Aliás o colectivo de editores é ainda mais claro: Esta liberdade do Governo britânico, que em nome da igualdade deve ter posto os homens a rogar pragas às colegas, tem poucas probabilidades de acontecer por cá. E, por uma vez, por boas razões. Não, não é pela mesma falta de vontade que nos impede, por exemplo, de ter paridade de homens e mulheres no Parlamento. José Sócrates não vai aumentar as funcionárias portuguesas ou diminuir os funcionários, igualando-os, não porque não o queira, mas simplesmente porque não precisa.

E não precisa porquê, imagina o leitor, perplexo com a modernidade da nossa sociedade quando comparada com essa primitiva e sempre igualitária sociedade britância: porque a mulher portuguesa se esforça, se mata a trabalhar para o conseguir.

O que faltou dizer foi que a mulher se esforça e se mata a trabalhar para conseguir... aquilo que o homem consegue sem o mesmo esforço. Porque, para esta gente, não só cabe à mulher o ónus da «prova» (de que é tão competente quanto um homem; um ser humano, portanto, como qualquer outro) como deve suportar sozinha o facto de ter que dar muito mais cartas no trabalho do que o parceiro masculino; de que deve ser uma mártir (trabalhadora e mãe exemplares) e de que não é o machismo que se deve vergar, é a mulher que deve procurar furar num mundo onde as regras laborais convivem alegremente com o machismo, o nepotismo, o favoritismo, não constituindo, assim, uma força de pressão sobre esses mesmo «ismos» que viciam e conformam uma maneira tão portuguesa de estar no mundo, mas participando alegremente desse mesmo espectáculo; de que o Estado não deve intervir, reforçando os instrumentos necessários para que essas situações possam desaparecer, descarregando parte do fardo que a mulher tem que suportar sobre os ombros.

Não tinha dúvidas de que o Correio da Manhã é o melhor jornal português, em muitos sentidos. É vulgar, popularucho sim, de direita e ligado profundamente aos interesses da ICAR, mas é simultaneamente o mais honesto nessa relação e o que melhor consegue fazer passar a sua agenda, através de uma longa tradição de abusos de interpretação e sensasionalismo por vezes mentiroso. O DN pode agora seguir-lhe o exemplo. No engenho, na manha e nas vendas.